Tem gente que diz saber onde
corre o boato do suor e da voz fraca, do coração batendo, da vista
lua cheia azul até em teto de mármore, mas desconheço, nunca vi.
Jura que tem na boca o sabor restante para quando mesmo o velho se vá
encontre mais um, em si ou no além, numa fila de posto ou velório,
o tédio reciclando a vontade de cópula, como copos de cerveja que
se deixam meios pra se beber outra vez, e outra vez, e outra vez;
essa cor de tentar à alma um lance, mais um de ficar piscando as
luzes entre pálpebras, cílios avessos, mentiras de cara e roupão,
hospedagem múltipla de sentidos, no coração chuveirada, me trouxe
desconfiança sempre. Se perde o juízo quando tem, e quando se
procura justiça, não há mais, está tudo roubado. Dizem que o amor
roubou os fatos, destruiu as provas e forjou a inocência; mas não
acredito nem no crime, nem no ladrão.
Piscam mais um pouco mais, sem
luz, em amarelo o semáforo, o sinal, e a sinaleira. O amor está
espalhado no subsolo dos cantos da terra. É a serpente danada na
selva, que só se sabe quando está perto pelo chocalho tilintando,
batendo de vez aquele apavoro em que já está perdido, pensando ser
tudo verde e água. Veneno raríssimo e intenso, penetra sem calma
por panos e inúteis calças e botas de tudo quanto queira em
delírio, na seda plebe, no rosto coxas, na selva neve. E está assim
o inevitável da decência perdida, que decadente estrela se largou
do puro por tanto desejar as redomas de vidro, tanto medo. E se por
milagre retorna a enargia após o beijo, e o trânsito serpentinizado
volta a ruim monotonia do barulho dos carros e seus faróis demais
por simples e fortes, está ainda . O peito necessita retornar ao
trabalho. Larga em casa mais uma pista de tinta amarela para que o
bicho retorne e te encontre e te morda, e o efeito doce não passe,
por entre os dias de convívio e não se borre nunca de creme ou
coisa mais fraca que há, mas só se fique densa como o tempo,
teimosa, cada vez mais propensa ao vermelho.
Mas não creio na loucura, nesse
calor de onda que se bate quando a febre ainda nem se instala, nesse
frio de abandono que não nos liga, acusa, tumultua, ofende. Pareço
crer mais no choque do que na distância bruta tua. Meu sentimento
mais duro se resguarda em colchão, colcha, brega tênis-de-mola. Eu
pareço te vender quando quero, e te fazer empréstimo quando preciso
de reparos, por um tempo. E embora sejam, amor e eu, portas de frente
e dos fundos de dois estreitos, me penso que saio por entre os dois
desejos: o de currar por de trás, e o do beijo, sendo necessário
por isso torcê-la, fazer-te manca, por você num cubo, sem
respiração... Mas a dor se desloca, mariposa noturna e fera. Outra
vez bate asas e espalha poeira sobre um texto velho. E eu não sei
se derivo da mentira ou minto de maneira genuína; como verme, sim te
cerco como se já não vivesse folgado te consumindo por dentro, mas
nego, ainda nego...
A rua está toda marcada com
soberba, e os ternos recheados de alguma vida. Pedras tão cruas que
se vestem a fino linho, assim eu me mereço, como tal homem que
rejeita o amor e some, por dentre o preto da noda encoberta do sabor
da trança de cabelo que a minha mão alcança, e não tenho medo.
Mas os dedos ficam com as pontas dormentes, como quem não deseje
mais o toque no piano, e a desconfiança fica aliada da ideia muda,
que tenta se despir de fraque, voltar para o adiante do beijo. Mas
há cocaína em terrenos cheios de cobiça. Se recorre a ela ou aos
remédios, pra fazer sua reprise, simulacros. Se há amor no
comercial de alvejante, ou na blusa feita sem carinho por imigrante
clandestino, não sei, continuo não o vendo. A reincidência
persiste, não tranco as portas de casa; me contamina o brasa
inconstante do fero bonito e breu. É escuro e retorno. Há quem diga
que me oscilo e contradigo nisso, me engana o que dorme de olhos
abertos e unhas. Ferido eu corro, sigo enganando também, com o frio,
copos de vinho e dança. Sobre a minha cama o alvará de soltura, que
se sabe ser minha nota plena de confissão, amassada pelo ruído da
respiração dupla e carregada, e constante conquanto me atei; agora
só, vai meu peito brincando de se fazer duas, pulmões de quatro e
corcovas, simulando-se, enquanto o teto cheio de estrelas se aproxima
do coração e afaga com o quente do passado que vejo e, como astro
do céu, que pode já estar morto há mil anos, clareia de falsa luz
o instinto da esperança e o esmaga, amor de supernova. E assim
nasceu a descrença e a mentira do não se brotar nesse abismo,
ladrão da meia-noite, a quem deixamos diamante em cofre aberto e
carne pronta em madeiras sem toalha, amor sem endereço.