“Adultos brincando de faroeste
matam menina de dez/onze”. Acho que esse poderia ser um título
pra manchete que por acidente encontrou meus olhos ontem/hoje.
Primeiro porque rima, e isso é bonito, ainda que escorra todo o
triste em dizer. Dane-se, não sou jornalista, e talvez por isso
tenha menos medo de assumir que a beleza de uma declaração dessas
em capa de site, de revista, de jornal esteja sempre acima do que
ocorre, já que deste fato se veste tanto, em palavra
portuguesa mais legítima, que pouco importa a essa gente o defunto:
desde que o terno (o “fato” traduzido e a doçura falsa, ambos na
mesma palavra) ornamente com cuidado o ineditismo do mesmo, do
choque, à procura do decoro necessário para dizer que matamos
crianças. E como bem cínicos, ternos no nosso fato, procuramos
vestir pela metade os acontecimentos mais complexos, tal como a
personagem Major Vidigal,na cena final do famoso livro de cabeceira
de todo estudante do ensino médio, inclusive daqueles condenados ao
sem-futuro do funcional analfabetismo; estes entenderão a metade da
notícia, a metade do livro, a metade do terno e do fato que digo...
Metade do complexo cinematográfico estilo em que se dividem os tiros
e se faz análise pra saber de onde veio a bala, da nossa metade
bandida, ou dos nossos mocinhos, que usam uma caveira no uniforme.
Ela era uma menina pobre, que
provavelmente não teria acesso ao todo da educação, a cuidados
psicológicos caso sobrevivesse. Acho ainda que cresceria e seria uma
mulher pobre, casada com um machista pobre, com ejaculação precoce,
bêbado e metido a macho com mulher, desses mesmo que andam por aí
com carro ruim tocando música ruim em som alto; talvez ela
trabalhasse e viesse a ter com muito sacrifício um subemprego em que
pudesse ajudar os pais a serem menos pobres, ou ao menos dividirem
entre si mesmos a pobreza e sentirem por um instante que deram certo
nessa vida e que criaram uma boa menina. Iria se divertir nos bailes,
antes de encontrar o seu cachaceiro-encantado, pra quem mentiria
dizendo que foi ele o primeiro... já teria amado, sido amada,
contudo; vivido. Trivial. Iria se divertir, talvez, com coisa
simples; talvez viesse a servir como devota numa igreja na favela
(cuja metade dá-se o nome de comunidade); trabalharia na zona sul
daquela cidade, ornando apartamento de alguém interessante: o primo
do amigo do cunhado, que agora é ex-cunhado, do famosão X da
novela... Voltaria correndo pra casa, orgulhosa disso, de contar pras
amigas que rico fede, apesar de todo cloro que usam para branquear
tudo. E riria ela de tudo isso, foleando uma revista para deixar o
cabelo mais liso; quase impossível, entre o ruído da caveira nas
vielas e dos tiros. Anoiteceriam esses dias também. Vidigal subiria
o morro, pelas metades, como sempre, com 1000 canais em alta
resolução por um preço amigo, de homem da lei. Compraria, se
divertiria com desenhos, filmes, jogos de pôquer, campeonatos
estranhos, notícias das guerras daqueles loucos árabes que explodem
tudo. Veria um quarto dos canais, talvez até menos do que isso. Tudo
muito difícil.
O filme de bangue-bangue, com as mesmas figurinhas de sempre, na mesma cidade fantasma, cidade escura e clara, porém, não permitiu que o mais banal da determinada estrutura social, desse à vida suja e parca o direito de subir a sua ladeira, sem dinheiro e sem nada do que ele compra, seguir seu curso em paz: Viver no bloco D, ir para o C, a cedilha amassada da nossa miséria de ter o 50% qualquer de toda coisa e sonhar, (sim, sonhar!) em chegar ao A magis, e poder ser a metade mais completa e salva de todas. O hemisfério em que se possa brincar com a segurança de ser pra sempre protagonista de si mesmo, nunca figuração; um canto desse mundo onde se possa sonhar em ser chico. Rei, policia e bandido; longe de toda essa lógica burra, que nos fadiga e divide, na cabeceira.